Feminilidades em Construção: O Papel do Discurso

Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra
Faculdade de Formação de Professores /UERJ


Baseada em estudos sobre construção de identidade, discuto neste trabalho o processo de negociação de feminilidades entre quatro adolescentes durante uma atividade de grupo proposta em uma aula de Ética e Cidadania. A interação revela discursos e vozes permeando o processo de construção identitária.

Palavras-chave: construção de feminilidades, interação, argumentação


INTRODUÇÃO

        Pesquisas como as de Coates (1999), Goodwin (1999) e Schiffrin (1990) apontam para a construção do selfleu enquanto um processo social, mediado pela linguagem. Na verdade, as identidades são construídas através das práticas discursivas nas quais nos engajamos (Moita Lopes 2002), ou seja, nós nos construímos e reconstruímos a cada interação.
        Tais práticas discursivas estão inseridas em ordens do discurso como aponta Fairclough (1996[1989]). Isso quer dizer que temos "acesso a" ou que somos "construídos através" de uma gama de discursos que circulam nas ordens sociais (ibid.) e que nos permitem desempenhar diferentes selvesleus (Coates 1997). Nesse processo, é possível perceber a coexistência de discursos conflitantes que fazem com que as identidades que emergem nas interações também sejam porta-vozes dessas posições de conflito. Desta forma, tornar-se mulher, ser mulher, não significa uma única forma de viver a experiência feminina, como afirma Coates (ibid.), em oposição a uma visão essencialista da mulher.
    Assim sendo, analiso a interação de quatro adolescentes para observar o processo de construção dessa feminilidade. A interação estudada mostra de que forma discursos que circulam na sociedade, normalmente naturalizados pelas ideologias (Fairclough 1996[1989]) e vozes (Bakhtin [1929] 2002), estão presentes e são continuamente atualizados em nossos encontros interacionais, contribuindo para que nos posicionemos em relação aos outros no discurso à medida que negociamos, argumentamos e (re)construímos nossas identidades sociais.

A IDENTIDADE PRODUZIDA NA INTERAÇÃO

        Estudos recentes na área de identidade entendem-na como sendo produzida na interação (McIlvenny 2002; Kotthoff & Baron 2001; Coates 1999). No que diz respeito à identidade de gênero e, mais especificamente, a estudos voltados para a construção da feminilidade, Coates (1999:123) afirma que "'falar como mulher' é algo que as falantes aprendem a fazer, não é algo que nascem sabendo" e esse aprendizado acontece na interação. Na verdade, outras identidades sociais - profissional, étnica, etária, etc. - também se constituem localmente, na medida em que os interactantes engajam-se em atividades discursivas. Isso significa dizer que as identidades são mutáveis, fluidas, dinâmicas, conflitantes, resistentes a discursos.
        Kotthoff & Baron (2001:xi), discutindo a constituição do gênero, entendem-na como um processo social, que é "executado não apenas no nível pessoal, mas reconhecidamente executado para se correlacionar a uma tipificação intersubjetiva. Ela estabelece expectativas, que são fatores mais ou menos estáveis da cultura". Além disso, ainda segundo as autoras (ibid.) "apesar de a maioria das pessoas gozarem de certa liberdade para aceitarem ou se oporem a esta 'normalidade' cultural, as expectativas assim como a vivência [performance] real do gênero estão inter-relacionadas a processos de poder na sociedade."
        Contribuindo para a discussão, McIlvenny (2002) aponta a tendência atual de não se considerar gênero enquanto uma categoria/identificação, mas como algo que fazemos e não como algo que somos - ou seja, o gênero é produzido na interação. Apoiado em Butler (1990), McIlvenny (ibid.) ainda aponta que, atualmente, há um movimento no sentido de se construir outro entendimento de gênero, conectando-o a um processo de reconfiguração, ou seja, à possibilidade de múltiplas resignificações discursivas. Ainda segundo McIlvenny (ibid.), a maneira como as pessoas falam, a utilização que fazem dos recursos lingüísticos são formas de produzir a diferenciação entre masculinidade/feminilidade. Citando Cameron (1997 apud McIlvenny 2002:7), o autor afirma:


O gênero tem que ser constantemente reafirmado e publicamente mostrado através da produção de ações particulares, repetidamente, de acordo com as normas culturais (historicamente e culturalmente construídas e, conseqüentemente, variáveis) que definem "masculinidade" e "feminilidade".


        Além disso, as diferentes possibilidades de viver o self, segundo Coates (1997), são decorrentes de nossa cultura. No caso da feminilidade, são diferentes possibilidades de ser mulher - a dona de casa, a adolescente, a executiva, a mãe, a esposa, a professora, a mulher avançada para seu tempo, aquela cerceada pelos discursos que a construíram - coexistindo. Sublinho o fato de que essas possíveis feminilidades podem ser vividas - e, normalmente, o são - conflituosa e concomitantemente.
        Por outro lado, Goodwin (1999) considera a necessidade de se estudar gênero correlacionando-a a outros índices - etnia, faixa etária, classe social, etc. - uma vez que, para delinear-se na interação, interage com outros fenômenos sociais. A autora sublinha (ibid.:369) como pesquisas recentes na área buscam um "conhecimento mais contextualizado de como as pessoas mobilizam recursos lingüísticos para seus projetos interativos". Assim, a própria "seleção da variedade lingüística constitui um ato de identidade" (ibid.), de forma que escolhas sintáticas/lexicais/prosódicas, a projeção de enquadres, a construção de alinhamentos, a utilização de marcadores discursivos, constituem-se nos aspectos lingüísticos utilizados pelos interlocutores para criar dinamicamente o gênero na interação. Como lembra Foucault (2002[1972]), os discursos são práticas que constróem sistematicamente os objetos sobre os quais eles falam.

DISCURSOS, ALTERIDADE E VOZ

        Para compreender como se dá o uso da língua no espaço social, i.e., como nossas formas de comunicação são constrangidas pelas estruturas e forças das instituições sociais em que vivemos, (Fairclough (1996[1989]:29). Em consonância com tal perspectiva, Foucault (2002[1971]:8,9) afirma que "em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos", mostrando que estamos imersos em discursos que circulam no espaço social.
        Fairclough (2002[1992]:117) lembra que as "ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de senso comum", ou, como Bakhtin ([1929] 2002:33) propõe, "cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e retrata a realidade à sua própria maneira". É possível inferir que há um processo de naturalização de significados, em um movimento que vai do social para o individual/pessoal, contribuindo para que ideologias sejam tomadas como um dado. Para Fairclough (1996[1989]), essa invisibilidade da ideologia a torna mais efetiva, pois colabora para dimensionar o mundo a partir de uma dada perspectiva, posicionando o leitor/ouvinte através de determinadas pistas lingüísticas.
        Assim, a interpretação de discursos não é um mero processo de decodificação, posto que os interlocutores utilizam-se de representações prototípicas, os member's resources (ibid:11), ou esquemas, que são socialmente determinados e ideologicamente formados. No entanto, como o próprio Fairclough (2002[1992]:117) aponta, isso não deve ser entendido de forma reducionista ou determinista, pois "essa propriedade estável e estabelecida das ideologias não deve ser muito enfatizada, porque [sua] referência à 'transformação' aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas".
        Coadunando-se com essa perspectiva de luta, superação, Moore (1978:39 apud Goodwin 1999:390) defende que "a vida social movimenta-se em um contexto de um conjunto de pessoas em contínua mutação, momentos de mudança, situações que se alteram e interações parcialmente improvisadas", na qual "regras estabelecidas, costumes e estruturas simbólicas existem, mas eles operam na presença de áreas de indeterminação, ou ambigüidades, inconsistências e, freqüentemente, contradições". Portanto, através das práticas discursivas, essas áreas de indeterminação e contradições existentes no espaço social, em que os sujeitos interagem, eles (re)constróem não só seus discursos, mas também suas identidades e a própria realidade social.
        Tais questões nos levam a considerar a centralidade do interlocutor, do outro, das vozes e das ideologias para que a interação seja tecida e para que cada participante posicione-se acerca de quem é (Bakhtin apud Stam 1992). Na verdade, Bakhtin ([1929]2002:35) afirma que "a consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social", ou seja, o self é estruturado na interação. Tal perspectiva conduz ao construto da alteridade, proposto por Bakhtin. Estamos em constante relação discursiva com o outro, presente na interação ou não, e cuja voz, colaborativa ou no confronto, constrói conosco posicionamentos no discurso e determina o que podemos dizer ou não, que ordem do discurso podemos acionar. Ela conduz também ao conceito de voz em Bakhtin (apud Cook 1992:182,83) que implica, por uma lado "a presença do falante dentro de um discurso em particular" e por outro que, no discurso as vozes "podem ser descritas como os de diferentes tipos de discurso, bem como de diferentes pessoas" perceptíveis nas enunciações e nos textos.

A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE NO NÍVEL MICRO DA INTERAÇÃO

        Para observar a construção da feminilidade na interação, na organização inter e intra turnos, um dos construtos possíveis, vindo da sociolingüística interacional, diz respeito ao envolvimento conversacional. Tannen (1989:12), por exemplo, o define como "uma conexão interna, mesmo emocional, que os indivíduos sentem e que os liga a outras pessoas, bem como a outros lugares, coisas, atividades, idéias, memórias e palavras". Além disso, "não é algo dado, mas realizado na interação" (ibid.), pois a conversação é uma construção conjunta em que ouvir não é algo passivo, exige interpretação, assim como falar envolve uma projeção do ato de ouvir. Tannen (ibid.), numa perspectiva dialógica, defende que "nenhum enunciado ou palavra pode ser falado sem ecoar como os outros os compreendem e os utilizaram". A autora aponta a existência de estratégias conversacionais que, por serem familiares aos falantes, enviam metamensagens de forma a ter a experiência de que partilham as mesmas convenções comunicativas - o que parece remeter aos member's resources de Fairclough ([1992]2002). Ela aponta algumas estratégias como: o ritmo que faz com que após uma pausa, por exemplo, dois falantes tomem o turno ao mesmo tempo; a repetição, pelo mesmo falante ou entre eles, de palavras, sintagmas ou mesmo frases; a representação do que os outros disseram através de discurso direto ou indireto; uso de narrativa.
        Isto nos leva às pistas de contextualização de Gumperz (1989[1982]). Considerando-se que um dado enunciado pode ter várias interpretações ou inferências, dependendo do interlocutor, Gumperz (ibid.:131) afirma que há traços na superfície dos enunciados ou mensagens "através dos quais os falantes sinalizam como os ouvintes devem interpretar qual é a atividade, como o conteúdo semântico deve ser compreendido e como cada enunciado deve ser relacionado ao que o antecedeu ou que se seguirá". Assim, essas pistas marcam o posicionamento dos interactantes em relação ao tópico, em relação uns aos outros.
        Outro elemento importante para este trabalho é a argumentação. Schiffrin (1996[1987]:18,19) estrutura a argumentação: posição - uma idéia, ou seja, uma "informação descritiva sobre situações, estados, eventos e ações no mundo e o comprometimento do falante para com a idéia" através de uma asserção que defende a veracidade da mesma; disputa/discussão de uma posição - "na qual um ou mais participantes pode se colocar contra: o conteúdo proposicional; o falante; as implicações morais ou pessoais do que foi dito". Algumas vezes tais oposições são feitas de forma indireta ou mitigada; suporte - através de uma explicação, justificativa ou defesa. Assim, o falante oferece informação através da qual ele induz o ouvinte a chegar a uma conclusão sobre a credibilidade da sua posição.
        Schiffrin (1990) apresenta como, em uma interação, os interlocutores constróem suas argumentações, apresentado opiniões e narrativas. Para ela (ibid.: 244), uma opinião é uma "posição avaliativa interna sobre uma circunstância" e, embora não estejam disponíveis para verificação externa, podem ser inferidas através de pistas lingüísticas como: [a] expressões prefaciadoras: 'minha opinião é'; [b] uso de determinados verbos: 'parece que', 'eu acho'; [c] (na língua inglesa) verbos modais como: should; could. Além disso, a autora chama a atenção para o fato de que, na interação, uma dada expressão que representa opinião pode significar posicionamentos diferentes do falante, dependendo do contexto e de como ele se coloca em face ao tópico. Por exemplo, a elocução "Essa é a minha opinião" pode significar não apenas que o que foi dito representa algo sobre o qual ele tem dúvidas ou que ele não se importa sobre o que outros pensem. Schiffrin (1990:250) ainda contribui para entendermos como argumentações são construídas quando aponta como as narrativas (ou estórias) são inseridas no discurso para funcionar, dentre outras possibilidades, como mecanismo de avaliação, mostrando que o falante está tomando um determinado posicionamento diante do tópico.
        Neste cenário, os marcadores discursivos constituem-se elementos importantes, pois como afirma Schiffrin (1996[1987]), eles são seqüencialmente dependentes e colocam "entre parênteses" as unidades de fala. Sua remoção, no entanto, deixa a estrutura da sentença intacta. Sua ocorrência não se limita aos limites das unidades enunciativas em que aparecem, podendo também ocorrer em seu interior. Eles podem ser uma opção para dar coerência à fala. No caso da argumentação, Schiffrin (ibid.) afirma que eles podem ser suprimidos sem causar nenhum dano à sua estrutura ou significado.
        Os construtos teóricos discutidos nesta seção serão ferramentas para análise dos discursos evocados pelas adolescentes. Assim sendo, observarei como, no nível micro de organização e construção do discurso, as adolescentes constróem/negociam suas feminilidades e posições através de suas argumentações, como marcam alteridade e introduzem vozes no discurso, como evocam os discursos que circulam socialmente, a partir do qual se (re)posicionam.

CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA

        As alunas, cujas interações aparecem neste trabalho, têm idades entre 15 e 17 anos e estão matriculadas em um curso de Formação de Professores de 1ª a 4ª série no Rio de Janeiro. É importante observar que, nessa escola, há um maior contingente de alunas do sexo feminino, devido ao curso oferecido. Para a turma daquelas alunas, lecionei Língua Inglesa e Ética e Cidadania quando esta pesquisa estava em curso. Com relação à primeira, a perspectiva instrumental move a minha prática, orientando o ensino daquele idioma para o desenvolvimento da habilidade de leitura. Isso leva ao uso de textos que abordam vários aspectos da vida social, provocando discussões e múltiplos posicionamentos. Esse fato é relevante porque aproveitei questões surgidas na outra disciplina, Ética e Cidadania, para fomentar essas reflexões e vice-versa, uma vez que tomo como norteador o princípio de que há várias possibilidades concretas de se viver a cidadania, da mesma forma como é possível vivenciar diferentes formas de ser mulher, homem, adulto, adolescente, idoso, criança, índio, etc. não apenas considerando um contexto social macro, como também o micro-contexto interacional.
        O presente estudo foi resultado de uma microetnografia (Erickson 1992), envolvendo uma aula na turma das adolescentes (turma A), cuja interação é o foco de análise, e uma aula em outra turma (turma B) para a qual também lecionava língua inglesa. Em uma aula na turma B gravei uma discussão sobre a questão da traição entre namorados e de como adolescentes do sexo masculino tratam as namoradas e as "ficantes". Foi a transcrição desse momento que serviu de motivação para a conversa de vários grupos na aula de Ética e Cidadania na turma A.
        Dentre os grupos da turma A, escolhi dois para fazer a gravação em áudio. Um deles era composto de dois rapazes e quatro moças. O outro era composto apenas de moças. Os membros de cada grupo ficaram responsáveis pela manipulação dos gravadores, de sorte que podiam parar a gravação, voltar e ouvir o que haviam dito. Limitei-me a fornecer informações à turma sobre o contexto de coleta daquela interação sobre a qual todos refletiriam para tecer as relações necessárias entre ela e as questões que tratávamos na aula de Ética e Cidadania. Também circulei pelos grupos para dirimir dúvidas sobre como desenvolver a tarefa e para responder perguntas.
        Volto meu foco de análise para a interação que se construiu no grupo de moças, uma vez que o fato mais importante na interação entre elas, creio, deveu-se ao fato de como se posicionaram, basicamente, em relação à: [a] a questão da traição; [b] como a moça deve reagir a isso; [c] porque o rapaz trai; [d] a distinção entre a menina "pra namorar" e aquela "pra bagunçar"; [e] os discursos de interlocutores ausentes na interação, desencadeando um processo discursivo de construção de gênero.
        Havendo apresentado a metodologia e o contexto em que o presente estudo foi desenvolvido volto-me, na próxima seção, para a análise de excertos dos dados transcritos a fim de observar como as adolescentes construíam sua feminilidade.

FEMINILIDADES EM CONSTRUÇÃO

        Conforme já mencionado, o foco de análise recai sobre a interação de: Ana, Bruna (Bru.), Carol, Priscila (Pris.) e Vívian (Viv.). Nos excertos, elas negociam suas posições em relação aos discursos que circulam socialmente, às ideologias neles imbricadas, revelados em suas enunciações. Esse posicionamento também acontece em relação às posições assumidas pelas colegas, permitindo a relação com o conceito bakhtiniano de alteridade e do dialogismo. Além disso, tais posições são negociadas/construídas a partir de uma argumentação, revelando um jogo de vozes - das adolescentes e de 'outros' fisicamente ausentes - inseridas e atualizadas para marcar tais posições. No nível mais micro de organização discursiva há marcadores discursivos, léxico, etc. que contribuem para a articulação discursiva/argumentativa; para a projeção dos posicionamentos das adolescentes, além de outras estratégias que mostram o envolvimento, por vezes colaborativo, por vezes em conflito, na construção da argumentação.

Discurso 1: Da fidelidade

        Aqui percebemos a presença do discurso da fidelidade que deve existir entre os namorados, ao mesmo tempo em que mostra a violação da fidelidade como um índice que permite ao traído fazer o mesmo.


Excerto 1:
1 Viv.: é melhor ter um do que não ter nenhum ... na mão. Fala o que você ia falar.
2 Bru.: fala, Priscila.
3 Pris.: eu acho que o namorado tem que ser fiel ao próximo porque se um dá o direito de::, de:: ser traído o outro também tem o direito, entendeu? É, é assim.
4 Carol: Já tem umas aqui no texto que: querem ter mais do que um namorado como uma colega aqui da frente falou, é ((risinho)) quer ter um, dois, três e .. trair sem o namorado saber, mas acaba que o namorado fica sabendo e quer ter o mesmo direito


        Priscila, no turno 3 [T3], coloca sua opinião através da expressão eu acho e utiliza o marcador porque para introduzir o suporte a ela que consiste em oferecer uma explicação justificando seu posicionamento diante do discurso da fidelidade. Carol, em [T4], parece introduzir uma posição diferente ao alinhar-se com as meninas da Turma B. Ela atualiza a voz das adolescentes da outra turma, reportando a opinião das mesmas quanto às meninas serem as que iniciam a traição, podendo ter mais de um namorado, inclusive. O uso do marcador , logo no início do seu turno, funciona como pista de contextualização, sugerindo a projeção de novo posicionamento. O alongamento da vogal do conectivo que, o risinho e a pausa parecem ser outras pistas de contextualização, funcionando como índices de seu cuidado em colocar na interação uma posição incomum ou que talvez não fosse facilmente aceita. Observo que, nos outros excertos, é Carol quem insere posicionamentos divergentes ao que está sendo dito. É na interação que ela vai negociando suas posições, sofrendo, algumas vezes, oposição. Todas vão construindo seus entendimentos sobre como é ser uma adolescente que precisa fazer escolhas e agir para viver sua experiência de aprender a se relacionar com o sexo oposto.

Discurso 2: Do menino com várias namoradas

        Neste fragmento, após a minha mediação para esclarecimentos solicitados pelo grupo, Bruna, Carol e Vívian discutem as diferentes lentes utilizadas socialmente para avaliar a ação de ter mais de uma namorada ou um namorado.


Excerto 2:
1 Bru.: eles falam da::, do::
2 Isabel.: qual a situação do menino [ne]ssa história toda? como é que o menino faz ou deixa de fazer.
3 Bru.:                                                 [É]
4 Carol: é, ele quer ficar com mais de uma menina, né, ele quer ficar com várias ao mesmo tempo.
5 Viv.: e ele acha, assim, que pegando mais de uma ele se acha o gostosão, o tal.
6 Carol: [[e então ele acha as mulheres como] objeto.
7 Pris.: [[e::, namorando com uma menina,] ele acha que ele tem o direito de sair com todas e a menina não tem a mesma: [o mesmo direito]
8 Carol:                                                                   [o mesmo direito] aí ele tem =
9 Pris.: = ela tem que ser o que =
10 Carol: = menina, ela tem que ser fiel
11 Viv.: MENINA quando sai com- menina quando sai com muitos é: meninos é ga[linha] é isso tudo. menino é o gostosão.
12 Carol:;                                                                                                                                  [é gali]
          ::nha


        Quanto à estrutura conversacional, percebe-se a freqüência de engatamento e sobreposição de turnos, sinalizando grande envolvimento no processo de negociação de entendimentos. No T7 de Priscila, o ligeiro alongamento de vogal, marcando um pequeno tempo tomado por ela para completá-lo, é suficiente para que Carol [T8] colabore para completá-lo, em sobreposição à fala da colega, prevendo exatamente o que ela diria. Algo semelhante acontece entre Vívian [T11] e Carol [T12]. Conforme Tannen (1989) apresenta, este também é um índice de envolvimento conversacional, mas neste caso parece, além disso, funcionar como um suporte mútuo no sentido de indicar que tomam um mesmo alinhamento em face do tópico.
        Tal estrutura delineia um posicionamento equivalente entre elas: questionar o discurso de que apenas o menino pode ter várias namoradas e sua atitude não ser vista como algo recriminável. No discurso da sociedade patriarcal e machista a promiscuidade é permitida ao homem. Como Fairclough (2002) aponta é a naturalização de ideologias que as torna senso comum. Pode-se observar articulação de dois discursos em contraposição: [1] nos turnos 1 ao 8 com foco em ele - no menino (T1) retomado pelo pronome ele nos turnos subseqüentes, respaldando-o, pois a sua atitude não é recriminável; [2] nos turnos 9 e 12 com foco em ela - na menina, vista como objeto de recriminação, caso aja como ele. Na perspectiva de Fairclough, as adolescentes estão reconstruindo sua posição diante desta ideologia, refutando-a.
        Em termos de léxico, marcando sua posição e, conseqüentemente, funcionando como pista de contextualização para o posicionamento co-construído, temos a oposição menino/gostosão x menina/galinha. Ademais, a repetição de estruturas iguais/semelhantes é outra estratégia conversacional, marcando seu alinhamento em relação ao discurso que acoita a atitude promíscua do menino. Isso acontece intra turno - (Carol [T4] - ele quer ficar com mais de uma menina / ele quer ficar com várias) e inter turnos - (Priscila [T7], Carol [T8] - o mesmo direito; Vívian [T 5] e Vívian [T 11] - ele se acha o gostosão / menino é o gostosão; Vívian [T 11] e Carol [T 12] - é galinha). Quanto ao marcador discursivo e usado Vívian [T5], Priscila [T7] e a própria Carol [T6], mostra que vão adicionando suportes com explicações para a assertiva inicial de Carol [T4]. Essa forma de construção de posições remete à perspectiva dialógica bakhtiniana, na qual todo significado está ligado àquele que o antecede e ao que lhe sucede, nas cadeias de enunciações em que reverberam as vozes dos participantes discursivos.

Discurso 3: Pagar na mesma moeda?

        Aqui a estrutura de participação é alterada. Ao invés da concordância em relação a "menino é gostosão", Vívian, Bruna, Priscila e Ana colocam Carol como o alvo de perguntas, como se ela estivesse na berlinda.

Excerto 3
1 Bru.: [[como que você se sentiria] no lugar dessa garota?
2 Carol: [[é isso!]
3 Viv.: e aí, Cacau, como você se sentiria no lugar dessa garota se um dia ele tivesse saído com outra menina?
4 Carol: ah, eu me sentiria no mesmo direito que ele me traiu me sentiria no direito de trair ele também, pagar com a mesma moeda que ele, ele fez comigo.
5 Bru.: mas você acha que ia continuar com ele?
6 Carol: não, [eu ia ficar (com o outro namorado).]
7 Pris.: [mas a sua mãe, mas a sua mãe não] te ensinou que nunca se deve fazer a mesma coisa que os outros faz?
8 Ana: é.
9 Bru.: isso, que senão volta pra você?
10 Carol: ah, mas ele já fez, já voltou. ((rindo))
11 Ana: (        ) (pra) voltar de novo, você continuaria com ele, se ele (pr[ocurasse)] por você?
12 Carol: [não, não.]
13 Bru.: você perdoaria?
14 Carol: não, jamais, eu nunca perdoaria uma traição, quer dizer, se ele tá comigo antes dele (0.2) me trair ele tem que cheg[ar "acabou, não sei o que", terminar o namoro (        ) foi.]
15 Pris: [mas eu penso assim, se ele tá a fim de outra pessoa ele tinha que] che- no caso dela, vamos dar o exemplo dela, ele tá a fim de outra pessoa, chega pra ela e fala "Carol, olha só, eu, não tá dando mais, tô gostando [de outra ] pessoa =
16 Carol: [terminar]
17 Bru.: = é, terminar.
18 Ana: (        ) falar a verdade.
19 Carol: é.


        No T1, Bruna faz uma pergunta retórica, retomando o assunto após uma pequena digressão. Vívian utiliza-se da expressão e aí para sinalizar que a discussão vai recomeçar. No entanto, ela não apresenta sua posição; ao invés disso, questiona Carol sobre a sua. Para projetar sua posição de que trata-se de uma situação hipotética, uma brincadeira, Bruna utiliza, como pista de contextualização, um verbo no futuro do pretérito (sentiria) e uma oração condicional ("se um dia ele tivesse saído com outra menina"). Em seguida, Carol é posicionada pelas colegas como a menina traída, passando a ocupar esse lugar discursivo, sendo alvo das perguntas de Vívian [T3], Bruna [T5], Priscila [T7], Ana [11]. Responde a partir do ponto de vista do outro, age corporificando o outro, ausente no discurso.
        Carol, no T4, argumenta que é preciso pagar na mesma moeda o mal recebido, ao menos no terreno das hipóteses - verbo no futuro do pretérito (eu me sentiria), indicando que é uma situação irreal - , pois está falando do lugar discursivo de uma adolescente traída pelo namorado. É a voz da outra adolescente de certa forma.
        Bruna inicia a próxima pergunta [T5] com mas. No entanto, não insere um enunciado em contraposição à posição de Carol na situação hipotética. Quer informações da colega. Priscila [T7], porém, ao utilizar o mesmo marcador, o faz para inserir um discurso diferente: o discurso da família (a sua mãe). Ela se coloca contrária ao posicionamento assumido por Carol, não ratificando-o. Além disso, Priscila parece estar questionando a moralidade ou ética da posição de Carol. No entanto, ela utiliza a voz da mãe que dá conselho para poder fazê-lo. Não é ela, Priscila, mas a mãe quem questiona, sendo alguém que pode utilizar seu poder e autoridade. Novamente o discurso do outro ausente - a mãe - torna -se presente na interação através da inserção de sua voz, via discurso ("mas a sua mãe não te ensinou que nunca se deve fazer a mesma coisa que os outros faz?")
        Do T5 ao T12, há um embate entre elas. As sobreposições não apontam um envolvimento no sentido da construção de um discurso de suporte entre elas, mas sim uma oposição ao discurso de "pagar com a mesma moeda" diante da posição assumida por Carol, no que se refere à traição. Priscila inicia o T15 sinalizando que é sua posição ("eu penso assim"), não toma a voz ou enunciados de outrem para fazê-lo. O marcador mas não parece indicar uma posição contrária à de Carol [T15]. Na verdade, parece adotar posição semelhante. Do T16 ao final, as interactantes retomam o alinhamento coletivo e de suporte com sobreposição de turnos, repetindo uma palavra chave para a discussão (terminar).

Discurso 4: Garota direita para namorar

        Circula entre as adolescentes um discurso, talvez portador da voz masculina, de que, entre elas, há dois grupos: as garotas que são "direitas" e as que são "da curtição".


Excerto 4
20 Bru.: (ele saiu) com a garota só pra curtição.
21 Viv.: aí ele é o:: =
22 Carol: = aí ele é o [(melhor)]
23 Pris.:                [às vezes,] às vezes ele::, ele fi-, ele ficou com essa garota, se ele (se virou nessa) garota foi coisas que ele queria fazer com essa garota e não podia fazer com a Carol [pelo] respeito que ele tinha pela Carol. =
24 Carol:                              [É:]
25 Bru.: = é verdade.
26 Viv.: é, né.
27 Pris.: ela (        )
28 Ana: se ele gostasse da Carol mesmo [ele ia conversar ]com ela. Não ia procurar primeiro a outra pra poder fazer isso.
29 Carol:                                                                        [ele não faria isso]
30 Viv.: (Porque) você:: entendeu? (          )
31 Ana: é assim, Priscilinha.
32 Carol: ah, não, mas também muita gente que não sabe . que o namorado tá traindo não sei o que, aí, depois de um bom tempo que vem descobrir, terminou tudo com ele aí DEPOIS ele, ou ele mesmo ou fica descobrindo por outra pessoa e (trai) mesmo namorado. Já aconteceu isso muitas vezes. NÃO comigo, mas sim com colegas minhas que, depois que terminaram o namoro, descobria que o: namorado traía ela.
33 Viv..: Na maioria das vezes que o menino sai com menina, assim, DIREITA, né, e::
                 [que ela::]
34 Ana: [Que é ] virgem?
35 Viv.: ISSO
36 Ana: isso, gente, na, na, na, na, a gente nem entende, pô, fala logo o que que é.
37 Viv.: aí, a maioria das vezes sai com, com, com meninas virgens, é, tem curtição com outras meninas, entendeu, a maioria dos meninos.
38 Carol: é:
39 Viv.: Sim, por exemplo, tá namorando com você mas não faz nada com você, te respeita, gosta muito de você, vai sacanear com outra pessoa..


        Elas trazem para a interação um discurso que dicotomiza a possibilidade de uma adolescente viver a sua feminilidade com relação ao sexo oposto. Deve-se observar que essas formas de feminilidade são dadas, naturalizadas no discurso da sociedade e que algumas das adolescentes desse grupo, de certa forma, aceitam, pois elas são 'garotas direitas' que merecem respeito. Por isso, devem, inclusive, entender quando o namorado procura a garota para bagunçar, para fazer com ela o que não poderia com a namorada (Bruna [T20], Priscila [T23]).
        Priscila [T23] chega a mitigar a força do ato de traição cometida pelo garoto, usando a expressão de freqüência às vezes. A repetição da mesma, o alongamento da vogal de ele e a hesitação funcionam como pistas de contextualização, prefaciando a projeção deste novo alinhamento com relação à forma como ela vê a atitude do rapaz nesta situação: ele não traiu por trair, mas porque gosta da namorada. Fez com a outra "coisas que ele queria fazer com essa garota e não podia fazer com a Carol". É um discurso que circula no esquema de conhecimento (member's resources) dos membros da sociedade, sendo reatualizado no entre elas na interação.
        Contudo, Ana [T28] sinaliza discordar do posicionamento de Priscila [T23], que fora respaldado por Carol [T 24], Bruna [T25] e Vívian [T26]. Marcando o novo alinhamento ao tópico, ela inicia seu turno com o marcador se, questionando a posição de Priscila, provocando a mudança de alinhamento de Carol [T29] e de Vívian [T30]. Ana focaliza o sentimento como elemento que evitaria a traição, sem cogitar na questão do respeito entre o casal. No turno 31, Ana ratifica sua posição após ser respaldada pelas colegas, usando o diminutivo (Priscilinha) de forma aparentemente irônica.
        Carol [T32] reage, tomando o turno e apresentando um outro alinhamento em relação ao problema: mas também muita gente que não sabe que o namorado tá TRAINdo. Ela oferece detalhes da situação: depois de um bom tempo que vem descobrir, terminou tudo com ele aí DEPOIS ele, ou ele mesmo ou fica descobrindo por outra pessoa e (trai) mesmo namorado. Porém, ser a pessoa traída não é positivo na cultura das adolescentes, já que inferioriza quem é traído. Isso faz com que Carol imediatamente afaste a possibilidade que ela tenha vivido tal situação, inclusive enfatizando o advérbio de negação não.
        Em seguida, voltam à questão inicial ; desta vez a garota para ser a namorada recebe outro adjetivo, qualificando-a para ser respeitada: ela é direita (dito com ênfase por Vívian T33). Além disso, ela ainda não iniciou sua vida sexual (Que é virgem? [Ana - T34] ; ISSO [Vívian - T35]). Novamente elas se posicionam como meninas direitas, que merecem o respeito dos meninos. O discurso da "existência de meninas para sacanear" está tão arraigado em seus esquemas de conhecimento e discursos que, em momento algum, questionam a ética de tal comportamento por parte dos garotos. Não questionam se deve haver garotas que sirvam para serem usadas como objetos. Nenhuma delas questiona como uma dessas garotas se sente por ser colocada nessa posição. O discurso que demarca a distinção entre nós - garotas direitas - e elas - garotas para curtição - é tão forte que nenhuma dessas adolescentes lembra que estão falando de pessoas como elas, mas que são estigmatizadas nos grupos de adolescentes.

Discurso 5 : Os meninos só querem enganar as meninas ou sobre a virgindade

        A construção discursiva da relação com o sexo oposto continua marcando a interação. Este fragmento é continuação do anterior e agora elas constróem o posicionamento diante do garoto que desvirgina uma garota.


Excerto 5
37 Viv.: aí, a maioria das vezes sai com, com, com meninas virgens, é, tem curtição com outras meninas, entendeu, a maioria dos meninos.
38 Carol: é.
39 Viv.: sim, por exemplo, tá namorando com você mas não faz nada com você, te respeita, gosta muito de você, [vai sacanear com outra pessoa.. e também-]
40 Carol:                                                                [Às vezes nem gosta, nem gosta, ela é virgem] e faz a menina, a cabeça da menina, a menina vai, dá mesmo. = ((rindo))
41Viv.: =mas esses é os que, [os que não gostam]
42 Carol:                                                   [dá, dá, dá mesmo e] depois leva um pé na bunda.
43 Viv.: não, mas esses, esses são os que não gostam. esses são ( ) não gostam, porque eles... eles não gostam e só quer usar a menina. entendeu? é igual, botar o caso aqui, igual da Vanessa Camargo, o Dado tiro[u a virgindade de]la e jogou ela no lixo.
44 Bru.:                        [Ela queria ( )] ((Risos de algumas delas))
45 Carol: então, foi o exemplo [que eu acabei de dar.]
46 Ana:                                [ele não gostava, não ] gostava dela. Ele queria, ele queria tirar a virgindade dela. Só isso.


        Carol, que, no excerto 4, aponta a falta de respeito por parte do garoto que trai a namorada, consegue o turno [T40] para colocar sua posição. Ela projeta um alinhamento diferente daquele que as colegas estavam construindo e que dava suporte ao discurso que o namorado que gosta, sempre respeita a garota direita: a maioria das vezes sai com, com, com meninas virgens, é, tem curtição com outras meninas [Vívian T37];não faz nada com você, te respeita, gosta muito de você [Vívian T39]. Carol tenta mostrar que não é assim, pois há garotos que não respeitam as virgens com as quais saem. O garoto é colocado como agente da decisão da menina porque ele "faz a cabeça da menina". A ela parece não caber nenhuma ou ter pouca responsabilidade pelo ato.
        Vívian [T40] reinicia sua defesa dos meninos que não agem assim por gostarem da garota. Ela marca sua posição, iniciando seu enunciado com o marcador discursivo mas e engatando no turno de Carol. Para ela "gostar da garota" é, por si só, um elemento que evita a traição e que leva ao respeito. Essa posição é defendida através da repetição de "não gostam", referindo-se ao tipo de garoto que toma tais atitudes recrimináveis e da narração de uma história acontecida entre uma conhecida cantora e um ator para respaldar sua posição (Schiffrin 1990).
        Carol [T45], ao iniciar seu turno com então, parece mostrar que a colega não entendeu o seu posicionamento, pois o exemplo fornecido por Vívian [T40] é, para ela, um reforço a sua posição. Entretanto, Ana [T46] parece alinhar-se com Vívian até mesmo quanto repete em seu turno a expressão "não gostava dela", assim como a intenção do ator em relação à cantora "ele queria tirar a virgindade dela". Carol realmente parecia haver se colocado em oposição à Vívian, uma vez que estava condenando a atitude do rapaz que trata uma garota do tipo "pra namorar" sem respeito, o que era defendido pela colega. O ponto de contato com a posição de Vívian estava no fato de que o rapaz "às vezes nem gosta, nem gosta" da namorada. Em nenhum momento, porém, elas cogitam a possibilidade de a garota também desejar estabelecer um contato mais íntimo com o namorado e de se responsabilizar por isso. Ainda é sobre o rapaz que recai a "culpa". De qualquer forma esses conflitos, aparentes ou não, construídos na interação, a forma como estão se posicionando face a esses discursos, a forma como vão construindo sua relação com o sexo oposto e com as colegas, dão a dimensão de como elas vão produzindo posições identitárias fluidas e mutáveis à medida em que argumentam e estabelecem posições.

Discurso 6: Meninas têm que se guardar! (Ou não?)

        Embora na sociedade, hoje, as adolescentes possam defrontar-se com discursos de liberação sexual, ainda é muito forte o discurso de que é preciso preservar a virgindade, talvez não mais até o casamento. Como elas reagem a isso?


Excerto 6:
47 Pris.: essas garotas que:: vão na fala (0.2) essas garotas que vão na conversa desses homens são umas babacas mesmo porque tem que se GUARDAR, tem que se guardar, [tem que se guardar.]
48 Viv.:                          [agora tem menino] que não tira. essa é a verdade.
49 Bru.: não, tem que se RESPEITAR.
50 Pris.: não. é-
51 Carol: não, não se guardar [também porque isso já tá fora de moda]=
52 Pris:                                                    [ ( ) porque, gente, ( ) assim, é]=
53 Ana: = não, assim tem que se respeitar.
54 Viv.: ISSO.
55 Pris.: tem que se valorizar, porque tem que saber o dia e a hora certa que vai ter que dar pruma PESSO:A =
56 Ana: = e pra quem vai dar. =
57 Carol: = e uma pessoa que goste=
58 Pris.: = uma pessoa que goste, que te prove aquele amor, que você gosta [mesmo, aquilo] com aquela pessoa que MERECE.
59 Bru:                                                                                                                     [(Isso)
                   (         )]
60 Carol: [[que] [você gos-]
61 Viv.: [[é]
62 Todas:                          [EEEHHH!]
63 Carol: que você gosta dela, né, e ele gosta de você. aí, sim, você pode liberar ge[ral, mas antes disso] você segura lá, bota um cadeado, toma banho de água fria=
64 Pris.:                                                   [Minha nossa!]


        Priscila, diante da questão da iniciação sexual, toma um posicionamento mais tradicional [T47]. Para defender sua posição, ela repete neste turno a expressão "Tem que se guardar", enfatizando a palavra guardar, reificando a virgindade - enquanto "coisa" a ser guardada. Até que ponto não há outras vozes (pais, religião, amigas) imbricadas em sua enunciação? Além disso, a responsabilidade pela iniciação da vida sexual é novamente imputada ao homem, a garota deixa-se levar, está em posição de sujeição (essas garotas que vão na conversa desses homens).
        Bruna [T49], ao iniciar com um não, projeta uma posição diferente. Enfatiza o verbo "respeitar", redimensionando, na interação, a questão da iniciação da vida sexual. Muda o foco de "coisa" para a "pessoa". Assim, vão (re)negociando entendimentos sobre a vivência da sexualidade adolescente.
        Carol [T51] também utiliza um não, colocando-se em oposição ao guardar-se de Priscila. Porém, diferentemente de Bruna, sua posição é de não se guardar. Justifica-se afirmando que "isso está fora de moda", alinhando-se ao discurso da liberação sexual. No entanto, mostrando que as identidades são contraditórias, no T63, apresenta uma condição para manter relação sexual com o namorado: haver amor entre eles, o que seria uma posição romântica, talvez fora de moda também. Assim, no T51 ela é a favor, no T63 nem tanto. Cabe ressaltar também as formas que as garotas devem utilizar para se segurar: uma delas remonta à época medieval - "bota um cadeado" - enquanto a outra lembra o esforço de religiosas para permanecerem castas - "toma banho de água fria". Ela aciona esquemas de conhecimento que dão ao relacionamento sexual a idéia de ato proibido, totalmente diferente de uma perspectiva de algo que é liberado, que não sofre sanções quando praticado, enfim, como ela diz que "está na moda", já que guardar-se é que estaria fora de moda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

        Neste trabalho analisei como Ana, Bruna, Carol, Priscila e Vívian vão aprendendo a ser mulheres, a conviver com sua sexualidade e com os discursos dominantes através das práticas discursivas em que se envolvem. Agradeço a elas pela oportunidade de reflexão, especialmente porque, como mulher, também me percebo em (re)construção a cada interação.


Convenções de transcrição(baseadas em Tannen, 1989):
[ ]                                       - sobreposição de turnos
[[                                        - início de turnos simultâneos
( )                                       - fala não compreendida
"palavra"                          - fala relatada
=                                        - engatamento de turno
MAIÚSCULA - fala em voz alta/muita ênfase
(palavra)                            - fala duvidosa
((    ))                                  - comentário do analista
::                                          - alongamento de vogal
(0.2)                                    - pausa medida

Nota: T refere-se a um turno de fala, seguido do número a ele atribuído.


REFERÊNCIAS

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A AUTORA

Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra atua como professora assistente no Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores/UERJ e como professora de ensino médio na rede pública estadual. Mestre em Lingüística Aplicada pela UFRJ, doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, seus interesses de pesquisa envolvem análise do discurso pedagógico, ensino/aprendizagem de língua inglesa, construção de identidade e do saber docente, produção e implementação de material didático para o ensino de inglês.