Feminilidades em Construção: O Papel do Discurso Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra |
Baseada em estudos sobre construção de identidade, discuto neste trabalho o processo de negociação de feminilidades entre quatro adolescentes durante uma atividade de grupo proposta em uma aula de Ética e Cidadania. A interação revela discursos e vozes permeando o processo de construção identitária. Palavras-chave: construção de feminilidades, interação, argumentação |
INTRODUÇÃO Pesquisas como as de Coates (1999), Goodwin (1999) e Schiffrin (1990) apontam para a construção do selfleu enquanto um processo social, mediado pela linguagem. Na verdade, as identidades são construídas através das práticas discursivas nas quais nos engajamos (Moita Lopes 2002), ou seja, nós nos construímos e reconstruímos a cada interação. A IDENTIDADE PRODUZIDA NA INTERAÇÃO Estudos recentes na área de identidade entendem-na como sendo produzida na interação (McIlvenny 2002; Kotthoff & Baron 2001; Coates 1999). No que diz respeito à identidade de gênero e, mais especificamente, a estudos voltados para a construção da feminilidade, Coates (1999:123) afirma que "'falar como mulher' é algo que as falantes aprendem a fazer, não é algo que nascem sabendo" e esse aprendizado acontece na interação. Na verdade, outras identidades sociais - profissional, étnica, etária, etc. - também se constituem localmente, na medida em que os interactantes engajam-se em atividades discursivas. Isso significa dizer que as identidades são mutáveis, fluidas, dinâmicas, conflitantes, resistentes a discursos. |
O gênero tem que ser constantemente reafirmado e publicamente mostrado através da produção de ações particulares, repetidamente, de acordo com as normas culturais (historicamente e culturalmente construídas e, conseqüentemente, variáveis) que definem "masculinidade" e "feminilidade". |
Além disso, as diferentes possibilidades de viver o self, segundo Coates (1997), são decorrentes de nossa cultura. No caso da feminilidade, são diferentes possibilidades de ser mulher - a dona de casa, a adolescente, a executiva, a mãe, a esposa, a professora, a mulher avançada para seu tempo, aquela cerceada pelos discursos que a construíram - coexistindo. Sublinho o fato de que essas possíveis feminilidades podem ser vividas - e, normalmente, o são - conflituosa e concomitantemente. DISCURSOS, ALTERIDADE E VOZ
Para compreender como se dá o uso da língua no espaço social, i.e., como nossas formas de comunicação são constrangidas pelas estruturas e forças das instituições sociais em que vivemos, (Fairclough (1996[1989]:29). Em consonância com tal perspectiva, Foucault (2002[1971]:8,9) afirma que "em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos", mostrando que estamos imersos em discursos que circulam no espaço social. A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE NO NÍVEL MICRO DA INTERAÇÃO
Para observar a construção da feminilidade na interação, na organização inter e intra turnos, um dos construtos possíveis, vindo da sociolingüística interacional, diz respeito ao envolvimento conversacional. Tannen (1989:12), por exemplo, o define como "uma conexão interna, mesmo emocional, que os indivíduos sentem e que os liga a outras pessoas, bem como a outros lugares, coisas, atividades, idéias, memórias e palavras". Além disso, "não é algo dado, mas realizado na interação" (ibid.), pois a conversação é uma construção conjunta em que ouvir não é algo passivo, exige interpretação, assim como falar envolve uma projeção do ato de ouvir. Tannen (ibid.), numa perspectiva dialógica, defende que "nenhum enunciado ou palavra pode ser falado sem ecoar como os outros os compreendem e os utilizaram". A autora aponta a existência de estratégias conversacionais que, por serem familiares aos falantes, enviam metamensagens de forma a ter a experiência de que partilham as mesmas convenções comunicativas - o que parece remeter aos member's resources de Fairclough ([1992]2002). Ela aponta algumas estratégias como: o ritmo que faz com que após uma pausa, por exemplo, dois falantes tomem o turno ao mesmo tempo; a repetição, pelo mesmo falante ou entre eles, de palavras, sintagmas ou mesmo frases; a representação do que os outros disseram através de discurso direto ou indireto; uso de narrativa. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA
As alunas, cujas interações aparecem neste trabalho, têm idades entre 15 e 17 anos e estão matriculadas em um curso de Formação de Professores de 1ª a 4ª série no Rio de Janeiro. É importante observar que, nessa escola, há um maior contingente de alunas do sexo feminino, devido ao curso oferecido. Para a turma daquelas alunas, lecionei Língua Inglesa e Ética e Cidadania quando esta pesquisa estava em curso. Com relação à primeira, a perspectiva instrumental move a minha prática, orientando o ensino daquele idioma para o desenvolvimento da habilidade de leitura. Isso leva ao uso de textos que abordam vários aspectos da vida social, provocando discussões e múltiplos posicionamentos. Esse fato é relevante porque aproveitei questões surgidas na outra disciplina, Ética e Cidadania, para fomentar essas reflexões e vice-versa, uma vez que tomo como norteador o princípio de que há várias possibilidades concretas de se viver a cidadania, da mesma forma como é possível vivenciar diferentes formas de ser mulher, homem, adulto, adolescente, idoso, criança, índio, etc. não apenas considerando um contexto social macro, como também o micro-contexto interacional. FEMINILIDADES EM CONSTRUÇÃO Conforme já mencionado, o foco de análise recai sobre a interação de: Ana, Bruna (Bru.), Carol, Priscila (Pris.) e Vívian (Viv.). Nos excertos, elas negociam suas posições em relação aos discursos que circulam socialmente, às ideologias neles imbricadas, revelados em suas enunciações. Esse posicionamento também acontece em relação às posições assumidas pelas colegas, permitindo a relação com o conceito bakhtiniano de alteridade e do dialogismo. Além disso, tais posições são negociadas/construídas a partir de uma argumentação, revelando um jogo de vozes - das adolescentes e de 'outros' fisicamente ausentes - inseridas e atualizadas para marcar tais posições. No nível mais micro de organização discursiva há marcadores discursivos, léxico, etc. que contribuem para a articulação discursiva/argumentativa; para a projeção dos posicionamentos das adolescentes, além de outras estratégias que mostram o envolvimento, por vezes colaborativo, por vezes em conflito, na construção da argumentação. Discurso 1: Da fidelidade Aqui percebemos a presença do discurso da fidelidade que deve existir entre os namorados, ao mesmo tempo em que mostra a violação da fidelidade como um índice que permite ao traído fazer o mesmo. |
Excerto 1: |
Priscila, no turno 3 [T3], coloca sua opinião através da expressão eu acho e utiliza o marcador porque para introduzir o suporte a ela que consiste em oferecer uma explicação justificando seu posicionamento diante do discurso da fidelidade. Carol, em [T4], parece introduzir uma posição diferente ao alinhar-se com as meninas da Turma B. Ela atualiza a voz das adolescentes da outra turma, reportando a opinião das mesmas quanto às meninas serem as que iniciam a traição, podendo ter mais de um namorado, inclusive. O uso do marcador já, logo no início do seu turno, funciona como pista de contextualização, sugerindo a projeção de novo posicionamento. O alongamento da vogal do conectivo que, o risinho e a pausa parecem ser outras pistas de contextualização, funcionando como índices de seu cuidado em colocar na interação uma posição incomum ou que talvez não fosse facilmente aceita. Observo que, nos outros excertos, é Carol quem insere posicionamentos divergentes ao que está sendo dito. É na interação que ela vai negociando suas posições, sofrendo, algumas vezes, oposição. Todas vão construindo seus entendimentos sobre como é ser uma adolescente que precisa fazer escolhas e agir para viver sua experiência de aprender a se relacionar com o sexo oposto. Discurso 2: Do menino com várias namoradas Neste fragmento, após a minha mediação para esclarecimentos solicitados pelo grupo, Bruna, Carol e Vívian discutem as diferentes lentes utilizadas socialmente para avaliar a ação de ter mais de uma namorada ou um namorado. |
Excerto 2: |
Quanto à estrutura conversacional, percebe-se a freqüência de engatamento e sobreposição de turnos, sinalizando grande envolvimento no processo de negociação de entendimentos. No T7 de Priscila, o ligeiro alongamento de vogal, marcando um pequeno tempo tomado por ela para completá-lo, é suficiente para que Carol [T8] colabore para completá-lo, em sobreposição à fala da colega, prevendo exatamente o que ela diria. Algo semelhante acontece entre Vívian [T11] e Carol [T12]. Conforme Tannen (1989) apresenta, este também é um índice de envolvimento conversacional, mas neste caso parece, além disso, funcionar como um suporte mútuo no sentido de indicar que tomam um mesmo alinhamento em face do tópico. Discurso 3: Pagar na mesma moeda? Aqui a estrutura de participação é alterada. Ao invés da concordância em relação a "menino é gostosão", Vívian, Bruna, Priscila e Ana colocam Carol como o alvo de perguntas, como se ela estivesse na berlinda. |
Excerto 3 |
No T1, Bruna faz uma pergunta retórica, retomando o assunto após uma pequena digressão. Vívian utiliza-se da expressão e aí para sinalizar que a discussão vai recomeçar. No entanto, ela não apresenta sua posição; ao invés disso, questiona Carol sobre a sua. Para projetar sua posição de que trata-se de uma situação hipotética, uma brincadeira, Bruna utiliza, como pista de contextualização, um verbo no futuro do pretérito (sentiria) e uma oração condicional ("se um dia ele tivesse saído com outra menina"). Em seguida, Carol é posicionada pelas colegas como a menina traída, passando a ocupar esse lugar discursivo, sendo alvo das perguntas de Vívian [T3], Bruna [T5], Priscila [T7], Ana [11]. Responde a partir do ponto de vista do outro, age corporificando o outro, ausente no discurso. Discurso 4: Garota direita para namorar Circula entre as adolescentes um discurso, talvez portador da voz masculina, de que, entre elas, há dois grupos: as garotas que são "direitas" e as que são "da curtição". |
Excerto 4 |
Elas trazem para a interação um discurso que dicotomiza a possibilidade de uma adolescente viver a sua feminilidade com relação ao sexo oposto. Deve-se observar que essas formas de feminilidade são dadas, naturalizadas no discurso da sociedade e que algumas das adolescentes desse grupo, de certa forma, aceitam, pois elas são 'garotas direitas' que merecem respeito. Por isso, devem, inclusive, entender quando o namorado procura a garota para bagunçar, para fazer com ela o que não poderia com a namorada (Bruna [T20], Priscila [T23]). Discurso 5 : Os meninos só querem enganar as meninas ou sobre a virgindade A construção discursiva da relação com o sexo oposto continua marcando a interação. Este fragmento é continuação do anterior e agora elas constróem o posicionamento diante do garoto que desvirgina uma garota. |
Excerto 5 |
Carol, que, no excerto 4, aponta a falta de respeito por parte do garoto que trai a namorada, consegue o turno [T40] para colocar sua posição. Ela projeta um alinhamento diferente daquele que as colegas estavam construindo e que dava suporte ao discurso que o namorado que gosta, sempre respeita a garota direita: a maioria das vezes sai com, com, com meninas virgens, é, tem curtição com outras meninas [Vívian T37];não faz nada com você, te respeita, gosta muito de você [Vívian T39]. Carol tenta mostrar que não é assim, pois há garotos que não respeitam as virgens com as quais saem. O garoto é colocado como agente da decisão da menina porque ele "faz a cabeça da menina". A ela parece não caber nenhuma ou ter pouca responsabilidade pelo ato. Discurso 6: Meninas têm que se guardar! (Ou não?) Embora na sociedade, hoje, as adolescentes possam defrontar-se com discursos de liberação sexual, ainda é muito forte o discurso de que é preciso preservar a virgindade, talvez não mais até o casamento. Como elas reagem a isso? |
Excerto 6: |
Priscila, diante da questão da iniciação sexual, toma um posicionamento mais tradicional [T47]. Para defender sua posição, ela repete neste turno a expressão "Tem que se guardar", enfatizando a palavra guardar, reificando a virgindade - enquanto "coisa" a ser guardada. Até que ponto não há outras vozes (pais, religião, amigas) imbricadas em sua enunciação? Além disso, a responsabilidade pela iniciação da vida sexual é novamente imputada ao homem, a garota deixa-se levar, está em posição de sujeição (essas garotas que vão na conversa desses homens). CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho analisei como Ana, Bruna, Carol, Priscila e Vívian vão aprendendo a ser mulheres, a conviver com sua sexualidade e com os discursos dominantes através das práticas discursivas em que se envolvem. Agradeço a elas pela oportunidade de reflexão, especialmente porque, como mulher, também me percebo em (re)construção a cada interação. |
Convenções de transcrição(baseadas em Tannen, 1989): |
REFERÊNCIAS Bakhtin, M. ([1929] 2002). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec - Annablume. A AUTORA Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra atua como professora assistente no Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores/UERJ e como professora de ensino médio na rede pública estadual. Mestre em Lingüística Aplicada pela UFRJ, doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, seus interesses de pesquisa envolvem análise do discurso pedagógico, ensino/aprendizagem de língua inglesa, construção de identidade e do saber docente, produção e implementação de material didático para o ensino de inglês. |